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2014 em revista

30/12/2014

The WordPress.com stats helper monkeys prepared a 2014 annual report for this blog.

Here’s an excerpt:

A San Francisco cable car holds 60 people. This blog was viewed about 3,500 times in 2014. If it were a cable car, it would take about 58 trips to carry that many people.

Click here to see the complete report.

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Senhor Nicolau – conto de Natal

24/12/2014

«Mucha magia y mucha suerte tienen los niños que consiguen ser niños.»

Eduardo Galeano

É impossível adivinhar o que teria acontecido se não fosse o senhor Nicolau. Durante um tempo indefinido, o velhinho de olhos de berlinde e barba fina e grisalha como teias de aranha desfeitas foi o único contacto diário que as crianças do instituto mantiveram com o mundo dos adultos.

Antes, as crianças podiam brincar na rua. Eram livres como os pássaros cujas melodias frutificavam nos ramos das árvores. O senhor Nicolau passava por elas e via-as. Achava que não existia mais nada no mundo a torná-lo tão belo. Mas depois veio a grande catástrofe, veio a enorme crise, e, atrás, um Governo chefiado por um homem tão gordo, tão feio e tão malvado quanto os fatídicos acontecimentos que o levaram ao poder.

O ditador era um homem que andava sobre duas pernas, mas pensava como se tivesse quatro patas. Era extraordinariamente alto. Dava a ideia de que, se quisesse, podia aquecer as mãos nas estrelas e lavar os dentes com pedaços de nuvens. E, no entanto, ele não se preocupava com isso. Não havia tempo para a higiene dos poetas. Tinha mais que fazer. A sua missão era pôr as contas do país em dia. Mesmo assim, apenas pela dádiva genética da verticalidade fora do comum, poderia ser considerado um homem à altura das circunstâncias. Embora fosse impensável que coisas tão altas coubessem no interior de um espírito tão baixo, o ego do ditador era maior do que ele. Por essa razão, e por um complexo semântico que o chamava aos tempos de escola e aos sucessivos erros ortográficos que contraía nos ditados, o chefe do Governo suprimiu dos dicionários a palavra ditador. Um orgulho tão ridículo quanto ilimitado levou-o a autodenominar-se de outra forma. A partir de então, junto do povo seria conhecido como o “Dono disto tudo”.

Quando o Dono disto tudo tomou as rédeas do poder, foi criada, entre outros organismos de repressão, uma espécie de polícia de afectos, com fardas fosforescentes: os mordaças. As pessoas conheciam-nos por “caçadores de sorrisos”. Tinham medo deles. Debaixo da longa gabardina, os mordaças usavam cassetete, pistola de 9 mm, uma mala para trocos e um terminal do multibanco a tiracolo. A tirana função desta polícia era a de cobrar impostos por cada sorriso, por cada beijo e por cada abraço. Rapidamente, as ruas foram-se enchendo desses homens sem rosto, caras de pau, auxiliados por letreiros de luzes vermelhas, intermitentes, junto aos sinais de trânsito, a dizer:

“SORRIA, ESTÁ A FORTALECER O ESTADO!”

Ou então:

” NÃO HÁ AMOR COMO O PRIMEIRO. AMAI-VOS UNS AOS OUTROS, POR AMOR À PÁTRIA!”

E, até:

“BEIJE, A BEM DA NAÇÃO.”

Não havia limites de idades. Não havia diferenciações por motivos de sexo ou crenças religiosas. Todos pagavam a boa disposição. O mais leve indício de vírgula alegre a ondular nos lábios obrigava o seu portador a abrir a carteira.

No princípio, os mordaças angariavam somas gigantescas de dinheiro junto das famílias em que existiam mulheres grávidas. O acto de amor não declarado gerava uma nova vida, mas representava uma despudorada fuga aos impostos. Sentimentos paralelos ao amor pátrio não eram permitidos pelo Dono disto tudo. Previam-se multas severas para aqueles que despeitassem a lei. Quem quisesse ter filhos, só poderia fazê-lo depois de uma autorização especial do governo, conseguida a peso de pedras e metais preciosos. O governo justificava a cobrança do imposto pela “suprema necessidade de promover políticas sustentáveis de fomento à natalidade“.

Foi assim que, lágrima a lágrima, gargalhada a gargalhada, o choro dos bebés e o riso das crianças se foi apagando das ruas como um esquecimento prolongado. O barulho concêntrico de pedradas num charco vindo de dentro dos beijos afundava-se no medo e na pobreza de homens e mulheres.

Para compensar a crescente diminuição de dividendos por imposto de gravidez, os mordaças endureceram os rostos. Tornaram-se mais sensíveis na avaliação do riso. Alguns deles aproveitavam-se dos desgostos. Havia quem chorasse de tristeza e tivesse de pagar como se estivesse a chorar a rir.

– O choro é uma emoção de dois sentidos. Nunca se sabe… – diziam aos incautos que gizavam um tímido protesto.

As pessoas foram-se tornando cada vez mais inexpressivas. Já nada as distinguia de um boneco ostentando roupas nas montras das lojas. Por dentro, os corações permaneciam vivos. Por fora, imitavam a indiferença.

A partir de então, homens e mulheres começaram a sentir às escondidas. Nunca o silêncio dos olhos tinha falado tanto, sorrido tanto, beijado tanto. O magnetismo delicado do olhar permanecia imperceptível à sensibilidade bruta dos caçadores de sorrisos.

O senhor Nicolau era um dos mais bem-sucedidos na arte de enganar os mordaças. Na pequena vila onde vivia, um lugar montanhoso, perdido nos pontos cardeais da indiferença, sem sul nem norte, sem oeste nem este, localizada apenas por coordenadas indecisas, a presença dos mordaças fez sentir mais depressa os seus efeitos. Havia muito que não se ouvia a gargalhada de uma criança. Com uma excepção: o espaço onde a poesia, a pintura, a música, a dança e a representação existiam atrás do pano escuro da clandestinidade. Esse lugar especial tinha um nome: Instituto da Criança Feliz. Afundados no desespero, com medo dos mordaças, sem dinheiro para pagar os impostos, foram muitos os pais que entregaram os filhos à delicadeza daquele lugar cheio de sol, de flores e de Primavera.

O instituto tinha sido criado com o objectivo de preparar as crianças para um futuro sem pieguices, capacitando-as para seguir o exemplo de coragem do líder do governo. Homem por quem o Dono disto tudo nutria alguma simpatia, o senhor Nicolau foi nomeado primeiro director do instituto, não por outros atributos especiais, mas pela experiência acumulada na loja de brinquedos em tempos frequentada pelo chefe do Governo. A postura discreta do velho fazia assentar todas as poeiras de desconfiança que se pudessem levantar em relação às actividades artísticas promovidas no instituto. Ninguém tinha sonhos suficientemente inseguros para levantar suspeitas sobre o senhor Nicolau.

Ao contrário do Governo, o senhor Nicolau tratava as crianças do instituto como gente. Como filhos. Como humanidade. Dava-lhes conselhos. Ensinava-as a viver de acordo com a sua essência. Repetia, sem que elas entendessem o significado redondo das suas palavras:

– Um homem vê melhor os caminhos que pisa se fechar os olhos. O melhor espelho dos seus erros são as falências do homem que tem à sua frente. A cegueira maior é não saber olhar para dentro.

Mesmo sem entender, as crianças riam, numa espécie de assentimento. Gostavam mais quando o senhor Nicolau lhes falava numa linguagem infantil, como se as coisas e as sensações trocassem de roupa. Como na ocasião em que explicava a uma menina de que matéria era feita a sombra:

– A sombra é a nossa altura deitada, quando somos vistos a partir do sol.

O senhor Nicolau manuseava as palavras com o dom da plasticina. As ideias que nelas sopravam vinham carregadas de vento fresco. Inspiravam-se melhor do que os programas de domingo, gravados num estúdio enquadrado por um cenário feito de trevas. Uma lei obrigava a manter a televisão ligada ao canal do Estado durante as tardes do primeiro dia da semana. Do lado de dentro desse sólido geométrico, ondas hertzianas mostravam o contorno de uma mulher muito séria, com pele de múmia. Cara de dor de dentes. Os olhos duros. Secos. Muito abertos. Não apagavam. Não acendiam. Brilho ausente. A funcionária do regime declamava discursos redigidos pelo Dono disto tudo. A voz arrastada. Eram discursos tautológicos, enfadonhos. Vinham vergados ao cansaço das frases intermináveis. Acabavam com as conclusões repetidas de um beco sem saída. Nessas alturas, o senhor Nicolau colocava um pano preto sobre a televisão. As crianças viravam as costas à mulher horrorosa, pegavam nas guitarras que o senhor Nicolau mantinha escondidas nas traseiras da oficina do instituto e tocavam músicas proibidas. Tão alto que a entoação monocórdica da mulher parecia cantar com elas.

A música evolava-se pelo ar. Colava-se à pele, como transpiração. No final dos ensaios, o senhor Nicolau fazia uma vénia às crianças. Depois, virava-se de frente para a televisão, retirava o pano que a cobria, apontava para a mulher insofrida e dizia, deliciado, como se acabasse de engolir o último pedaço de um fruto raro:

– Caramba! Nunca conheci ninguém que cantasse tão bem.

As crianças riam alto. Um coro de passarinhos a chilrear. Lá dentro, podiam fazê-lo. As paredes do instituto eram espessas, à prova de reflexo e de som. Os vidros, vaporizados por fumo, não deixam ver para dentro.

Quando brincavam no recreio, as crianças gostavam de observar à sua volta. Olhavam atentamente a monotonia e a tristeza desfilando nas ruas.  Por vezes, o senhor Nicolau juntava-se aos meninos e meninas. Assentava-lhes a mão muito usada sobre as cabeças peludas e ouvia-as confessar umas às outras, enquanto apontavam com saudade, como se ele não estivesse junto delas:

– Como éramos felizes ali.

– Que moles são as cores por detrás deste silêncio.

As crianças adoravam o ar livre, durante a noite. Gostavam do pátio. Do campo de jogos. Jogavam e corriam. Divertiam-se por turnos. Algumas dormiam. Outras, mimetizadas no escuro, ocultadas pelo recolher obrigatório, saíam do instituto, enfrentando a solidão das ruas. Levavam pequenos bilhetes com elas. Colocavam-nos nas frestas das portas. Nas caixas de correio. Nos para-brisas dos carros. Essas pequenas missivas carregavam consigo palavras de autores conhecidos, que as crianças estudavam durante o dia. Era, sobretudo, literatura proibida pelo Dono disto tudo, sob o pretexto de «dispersar o pensamento das pessoas». Segundo as autoridades culturais, era fundamental que a arte versasse sobre o rigor útil dos factos. Apenas o real podia ser criado.

– O fim último da arte deve ser a riqueza das empresas. – dissera o Dono disto tudo, escondido atrás de um timbre feminino, num dos discursos reproduzidos nas matinés sonolentas de domingo.

Um grupo constituído por crianças com idades agarradas à adolescência atravessava maiores riscos na difícil tarefa de espalhar mensagens de esperança. Transportando baldes de tintas multicores tirados à oficina do senhor Nicolau, resolviam adulterar algumas das mensagens do regime escritas nas ruas. Para isso, pintavam os muros da vila com o arco-íris da poesia proibida. Então, os muros transformavam-se em fortalezas de liberdade. O Dono disto tudo lia esses poemas como se fossem textos de devassa à integridade racional da nação.

No largo principal, na face mais visível de um muro, o dia soletrava a propaganda do Estado:

“NA PÁTRIA OCIDENTAL, O VELHO É NOVO.

O POVO SABE QUE O TRABALHO LIBERTA E FAZ SORRIR”.

A mão jovem da noite corrigiu, devolvendo às artérias da cidade um halo rasurado de verdade digna e pura:

COMUNICADO

NA FRENTE OCIDENTAL NADA DE NOVO.

O POVO

CONTINUA A RESISTIR.

SEM NINGUÉM QUE LHE VALHA,

GEME E TRABALHA

ATÉ CAIR.”

MIGUEL TORGA

Nos dias seguintes, ao ser informado do acontecimento, o iracundo Dono disto tudo decretou uma apertada caça ao homem.

– Esse subversivo desse engraçadinho deve ser exemplarmente condenado! – ordenou a babar um visco enraivecido pelos queixos abaixo. – Falem com os jornais. Eles que lhe descubram qualquer coisa pessoal. Uma dívida por pagar aos nossos cofres. Um podre basta! Temos de achincalhá-lo enquanto prosseguem as buscas.

Mesmo sabendo que o poeta já tinha morrido há muito, os verdugos ao serviço do Dono disto tudo cumpriram a ordem diligentemente. Depois de remunerados, os jornais iludidos pelas mentiras do Dono disto tudo fizeram o resto, com fotografias, enredos improváveis e datas inventadas. Miguel Torga, nunca seria encontrado, a não ser nos bilhetes deixados pelas crianças.

Movido pelo mesmo descontrolo, o Dono disto tudo mandou pintar de negro o mural onde tinham sido escritas as palavras líricas. Sobre essa página sem horizonte e sem margens, impôs que se escrevesse, a gordo, a branco:

É PROIBIDO ESCREVER NAS PAREDES. OS TRANSGRESSORES SERÃO SEVERAMENTE PUNIDOS.

Uma manhã depois, os elos de luz nascidos no primeiro rasgão do sol pagaram-lhe na seguinte moeda:

É PROIBIDO PROIBIR! OS DITADORES SERÃO CERTAMENTE DESTITUÍDOS.

Tinham sido as crianças.

Quando tudo começou, o senhor Nicolau sabia tanto como o Dono disto tudo. Não imaginava. Era incapaz de tecer suspeitas. As crianças principiaram aquelas atividades noturnas sem o seu conhecimento. Depois, quando o senhor Nicolau descobriu e viu a olhos vistos, as crianças continuaram a sair, desprovidas do seu consentimento. Mais tarde, ao aperceber-se da força incontrolável do futuro, o senhor Nicolau assumiu a responsabilidade de planear todas as missões com a minúcia de um relojoeiro.

Após o episódio do poema, as investidas das crianças do instituto pelas ruas da noite foram perdendo força. As autoridades tinham espalhado mais olhos vigilantes pelas arestas da vila. Por engano, foram detidos e sumariamente condenados dois vagabundos analfabetos, com livros na sua posse. Clássicos da literatura que lhes serviam de almofadas na hora de encostar a cabeça e que, no máximo, só lhes garantiam melhores sonhos, dissera um deles ao mordaça que os algemou.

Uma corrente de medo retinha as crianças dentro das fronteiras do instituto. Nessa altura, o Instituto da Criança Feliz excedera em muito a sua capacidade. As crianças viviam cada vez mais apertadas, como cotonetes numa caixa. A vontade de brincar na rua era um desejo cada vez mais incontrolável. Era a única saída. Quando o senhor Nicolau albergou na oficina do instituto, por falta de espaço nas camaratas, um casal de palhaços, as crianças ficaram proibidas de sair.

As crianças insistiam. Queriam ir para as ruas. Para as azinhagas. Para os becos. Era importante continuar a acordar as consciências.

– Lembrem-se do Dom Quixote, meninos: «o medo tem muitos olhos!»

A profissão de palhaço era das mais perseguidas pelos mordaças. Também ganhavam a vida incitando o riso, e, por essa razão, os caçadores de sorrisos achavam-se no direito de possuir um palhaço de estimação. Traziam-nos puxados por uma trela, como um cão de raça. Obrigavam-nos a dizer piadas, a contar anedotas e a fazer números engraçados. Sempre que os palhaços se recusavam a essas imposturas, ou nas ocasiões em que se encolhiam de cansaço, os mordaças mostravam-lhes o seu apreço com bordoadas de transformar um corpo num saco de ossos quebrados. Do lado de dentro do instituto, as crianças viam isto e ficavam ensimesmadas. Algumas choravam com pena.

Os dois palhaços alojados na oficina eram amigos do senhor Nicolau. Tinham trabalhado em circos de todo o mundo, mas as saudades de casa e o desejo de prolongar os genes artísticos por mais uma geração trouxeram-nos de volta ao país. Um dia antes da catástrofe, tinham feito uma das mais esplêndidas atuações de que se lembravam. Palmas e aclamações. No dia seguinte, o circo destruído. Ela, grávida. Não tinham para onde ir. Tentaram os espectáculos de rua, antes do Dono disto tudo ter tomado o poder. Depois, quando as perseguições aos palhaços se iniciaram, não sobrou alternativa, senão a de andarem fugidos aos caçadores de sorrisos, disfarçados por entre o povo, para não serem reconhecidos. Até que, por fim, o homem e a mulher conseguiram algum conforto na oficina do Instituto da Criança Feliz. A criança poderia nascer em paz, dali a dias.

Certa madrugada de inverno áspero, um frio afiado, difícil de suportar, num ato de revel para com as determinações do senhor Nicolau, as crianças do instituto pegaram em todos os poemas que tinham transcrito desde a última vez, e saíram à rua. O diretor do instituto apercebeu-se demasiado tarde, já todos os meninos percorriam as artérias da vila, como um rio pulsante, torrencial, incontrolável. Sem se vestir, pijama vermelho e gorro com pompom por cima da cabeça, o senhor Nicolau tentou correr atrás delas. Chamá-las-ia à razão uma a uma. Porém, no instante em que atravessava a porta principal do instituto na esperança de tentar demovê-las, o velho sentiu uma mão firme como um aguaceiro assentar sobre o seu ombro enchumaçado. Era um dos palhaços escondidos na oficina.

– Rebentaram as águas. Ajuda-me! Vai nascer agora! Isto não é uma piada!

Enquanto o sol gelado da madrugada dava mostras de iniciar o seu voo baixo, a vila ouviu o choro infante. Atravessou a impermeabilidade de todas as paredes. Vinha do instituto. As crianças ficaram no sítio onde estavam, mimetizando estátuas. Depois, do outro lado da vila, um novo pranto recém-nascido. No centro, outro igual. E outro. E outro. E outro. Entre eles, espalharam-se gargalhadas. Dentro das casas, as luzes acendiam-se. Homens e mulheres saiam à rua de lanternas acesas, empurrando a noite, ajudando o dia a clarear. Declamavam os poemas deixados pelas crianças debaixo da porta. Pais e mães de crianças do instituto. Abraçavam-se e beijavam-se. Faziam o mesmo a esses meninos e meninas sorridentes, pais e mães de filhos por nascer. Algumas pessoas riam, num choro sem medo, de libertação. Incrédulos, os mordaças e a guarda foram envolvidos por essa onda paralisante. Largaram as armas. Atiraram ao lixo os utensílios para cobrança de impostos. Juntaram-se às dezenas e centenas de pessoas que celebravam, a caminho do Instituto da Criança Feliz. As famílias voltavam a ser completas. Era Natal!

Mais tarde, quando o Dono disto tudo não era sequer proprietário de dignidade, obrigado a fugir para parte incerta, e o país era de novo livre, ao lado de uma árvore iluminada de presentes, o senhor Nicolau. A sua mão leve, como se caminhasse sobre águas marinhas, começava a escrever esta legenda no livro de memórias do Instituto da Criança Feliz, sob a fotografia do bebé nascido na oficina:

«Não há profecia mais risonha do que o choro de uma criança. É na voz sem rugas dos jovens que a liberdade se encontra mais madura

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O meu tio Zé

06/08/2014

O meu tio era um homem bom. Por isso é que fez o que fez. Digo-o assim, sem hesitações, não para desculpá-lo da decisão que tomou, não para torná-lo imune a um conjunto de falências que lhe possam apontar como uma lista de compras. Digo-o porque talvez me seja mais fácil compreender a lógica oculta por detrás do erro. Porque somos sempre muito rápidos a julgar e a catalogar e tão demorados a trocar de pele com os outros. Digo-o para que o erro do meu tio não tenha como solução outros erros mais cruéis e menos escrupulosos.
Falar do meu tio é difícil. Não sei se tudo o que me vem à cabeça quando penso nele é verdade ou é inventado pela necessidade de dar voz a um homem simples que só a teve no silêncio. Perseguir as memórias que me deixou é como correr atrás dum chapéu-de-sol desgovernado pelo vento numa praia cheia de sol, de gente e de sueste. Tanto pode magoar muitas pessoas nessa praia – a minha mãe, o meu irmão, o meu outro tio, os meus primos e os meus tios-avôs – como trazer luz e calor ao inverno prolongado e rigoroso das saudades que deixou de herança.
Dizem-me, com sorrisos que não chegam a preencher metade dos lábios:
– O teu tio era um homem bom, mas, sabes, às vezes, metia-se nos copos.
Confunde-me a intransigência de tanta delicadeza. Uma espécie de riso e choro ao mesmo tempo. É como se me fosse proibido saber uma parte misteriosa da história. Uma parte que nega a outra e impede o meu tio de ser considerado um homem igual aos outros. É como se me dissessem:
– O teu tio tinha o jogo dele, mas, às vezes, fazia batota.
Como se não fizéssemos todos batota na hora de enfrentar as regras mais tristes da nossa existência.
Sei porque é que me dão estas respostas. O meu tio não gostava da escola. Faltava muito. Preferia andar pelos cerros a enfeixar braçados de lenha nos lombos dos cães. Brincou pouco. Não salvou ninguém das portas da morte, não descobriu planetas ou constelações, nem calculou nenhuma fórmula científica para a erradicação dos grandes podres do planeta. Não esquartejou átomos, não encontrou nenhuma espécie de invertebrado por catalogar, não comandou homens numa guerra, não trouxe avanços diplomáticos à resolução do conflito israelo-árabe, não era um artista, nem da expressão do amor em coisas belas, nem da perversão consentida da palavra no desempenho de cargos políticos, embora se gabasse de ser sempre dos primeiros a votar em dia de eleições.

Nasceu pobre e continuou sempre assim, aos pontapés do desinteresse alheio, exceptuando para trabalhos pesados, duros e malcheirosos, como daquela vez em que apareceu em casa com o corpo todo a ranger de dores e a tresandar a… Bem, nem vale a pena contar. Os tipos com cara de prisão de ventre que o contrataram, sem lhe pagar o serviço, claro, porque eram todos amigos e essas tretas com que se enganam os pobres diabos, saberão disto melhor do que eu. Perguntem-lhes, se quiserem. Tenho apenas a intenção de dizer que o destino do meu tio deve ter sido escrito por um punho tão leve e desajeitado que não seria necessário uma borracha para apagar a anotação com o nome dele nas margens do grande livro de registos da Humanidade. Bastaria humedecer o mindinho na ponta da língua e esfregar uma vez na folha branca e já estava: poeira interestelar, o vazio infinito de um átomo, acabava-se o meu tio.
Mas o meu tio era um homem bom. Mesmo! Pode ter sido um nome calado nas ciências, no espectáculo e na vida pública e, no entanto, tinha as suas virtudes, como qualquer outro predestinado. Já lhes disse que não posso garantir que todas as saudades que herdei do meu tio me permitem ver as memórias não como elas realmente aconteceram, mas da maneira que a minha imaginação as recria. De maneira que, quando me lembro do meu tio, faço-o como aquelas curtas-metragens dedicadas às pessoas importantes: uma sequência desconexa de imagens a voar nas asas de uma banda sonora qualquer. Na parte do meu tio, a música que me toca dentro da cabeça é a “Human Touch”, do Bruce Springsteen, mas sem a parte lamechas da miúda. O Bruce Springsteen foi um artista que o meu tio ouviu, mas, graças a um inglês tão mau quanto inexistente, nunca soube reconhecer.
Nessas imagens, somos nós, eu e o meu tio, a fingir que somos felizes. Eu porque o sou e não sei; ele porque não quer saber se é ou não. Há a mão do meu tio sobre a minha cabeleira escorrida, cortada à saladeira, como se afagasse relva molhada. O gesto desce, desliza suavemente pela cara e apanha-me o queixo. Esse gesto continua. O meu tio abraça o meu sorriso. Leva-o debaixo do braço, como um jornal. Pode ler a minha expressão enternecida mais tarde, antes de dormir, ainda que já se tenha esquecido de como se faz para juntar as sílabas de amor reverberando nos meus dentes. Mesmo que já tenha nascido adulto, o meu tio toca-me e é uma criança. As mãos do meu tio são brandas e duras e dissolvidas como rochas calcárias. Tenho a ideia de que cada vez que o meu tio as lava, elas ficam mais descarnadas. Por isso, prefiro lembrá-las cheias de calos e ligeiramente deformadas nas palmas, como pedras de amolar.
O meu tio está desempregado, de baixa médica ou de férias. Não me lembro. É verão. Está calor na rua. O fervor da estrada torna o andar do meu tio um movimento turvo e deformado no princípio das pernas, junto ao chão. Traz uma garrafa de Sumol e um saco de tomates maduros. Eu brinco num resto de sombra transpirada junto às casas. Estão lá o meu irmão e os meus amigos. Atiramos tempo fora. O meu tio chamava-nos: “a matula”. Ao entrar em casa, diz qualquer coisa que não se ouve. Acena com a garrafa fresca. Ninguém da matula lhe responde. Eu e o meu irmão também não, embora eu fique feliz de ver o meu tio e de ver a humildade do aceno adoçada por um litro de Sumol. Minutos depois, o meu tio enfia a cabeça para fora do postigo, olha para a esquerda, para direita e, depois, novamente para esquerda, como se fosse atravessar a estrada. Não sai de casa. Só a voz dele vem ter connosco à rua. Só eu pareço ouvi-la. Quando me vê, chama-me pelo nome e volta para dentro. Então, sim, vou ter com ele. Sei que à minha espera tenho um prato de tomate migado à garfada, temperado com azeite e vinagre, triângulos minúsculos de alho e uma leve brisa salina. Quando chego à cozinha, a mão áspera do meu tio faz chover flocos de neve de orégãos sobre o prato de papa encarnada. O meu tio dá-me um garfo e uma fatia de pão e comemos os dois a “tomatada” sem dizer nada um ao outro. Se calhar, dizemos. Não tenho a certeza. Às vezes, não nos lembrarmos das palavras trocadas é uma forma de inventar silêncios. Este, que é o chão entre mim e o meu tio, funciona como se houvesse em nós a consciência de que aquela felicidade poderia ruir como uma avalanche. Para isso, bastava um miligrama de ruído desnecessário à beleza do instante. A minha memória não é… Bom, vocês já sabem. Pode ser que o meu tio até esteja a perguntar qualquer coisa: se quero que entorne mais Sumol para dentro do copo, se gosto mais da “tomatada” com o alho picado ou às rodelas… Não o deixo falar. As palavras, aqui, já não têm importância. Este silêncio sobrepõe-se-lhes e é delicioso.
Penso no meu tio, e é junto a ele que estou, no tempo congelado da minha infância. A achar que o mundo começa no fim das pernas do meu tio, onde me agarro como a um mastro de um navio à deriva na errância vacilante de um mar tempestuoso. Sou mais pequeno que as pernas do meu tio. Água pelos joelhos. Abraço-me a cada uma delas, à vez, e, enquanto o meu tio caminha, vou balançando passo a passo no pêndulo desse tempo que não pára. Nas pernas do meu tio, dou oitenta voltas ao dia num mundo de fantasia. Não existe, porque só tem tamanho na minha cabeça.
A imagem que vejo a seguir é o meu tio com o cabelo penteado para o lado e a cara remendada por pedacinhos de papel higiénico com pequenas pintas de sangue. O meu tio corta-se muitas vezes a fazer a barba. Talvez seja dos nervos. Ou da epilepsia. Eu acho que é só falta de jeito. Mais nada. Porque o meu tio tem muita destreza para outras coisas. Por exemplo: o fio e a pulseira de prata que brilham como as poeiras cósmicas de um cometa à volta do pescoço e do braço direito são criteriosamente esfregados, uma vez por semana, com as pevides viscosas dos melões que comemos à sobremesa. O meu tio também conhece muitas mezinhas. Conseguiu erodir uma verruga nas costas da mão, quase do tamanho de um meteoro, a esfregar-lhe aloé vera todos os dias, várias vezes. Curou uma hepatite a beber chá de celidónia. Eu acho que foram os medicamentos que o salvaram. Ele não. Eu recomendo-lhe juízo, aconselho-o a não brincar com o fogo, que pode não ter morrido do mal, mas que ainda pode ser levado pela cura. Ele diz que eu não percebo nada. E eu prefiro vê-lo convencido de que sabe mais que os médicos. Parecendo que não, dá-lhe uma certa autoestima. O meu tio é assim. Faz da ilusão uma verdade. É uma daquelas pessoas a quem devemos responder “está, sim senhor!” quando observa que está um lindo dia e lá fora não há uma fenda de sol a despontar no metal do céu. Isso ajuda-o a descontrair e a escapar ileso aos efeitos secundários de pensamentos perturbadores. É pena só ter descoberto isto agora. Talvez tivesse evitado muita coisa.
Agora outro bloco de imagens: a parte da frente do carro velho do meu pai está virada no sentido contrário ao da única saída. Embora não tenha carta de condução, o meu tio sabe guiar. Não sei quem o ensinou. Não é importante, agora. É domingo. Dia de ir visitar a minha avó ao hospital. Eu e o meu irmão pedimos ao meu pai que nos deixe ir com o meu tio dar a volta ao carro no pequeno largo ao fundo do lado cego da rua. O meu irmão vai à frente. Eu, no banco de atrás, agarrado aos ombros do meu tio. O meu tio dá à chave. O gargalhar do motor funde-se na cumplicidade dos nossos. O meu tio só tem a blusa branca de alças que se interpõe entre a pele e as camisas e nos deixa ver os pelos do peito. O fio de prata brilha. Um palito anda à roda entre os dentes. A viagem é curta, quase sem tempo, quase sem lugar, mas há uma certa adrenalina inocente ao transgredir cinquenta metros de lei ao lado dos nossos heróis. É provável, mas talvez não, porque o meu irmão nunca exagera, que o meu irmão diga:
– Somos todos da máfia!
Depois há a imagem do momento em que descobri que o meu tio era um homem bom. Sensível. Ou talvez já andasse cismado na ideia de fazer o que fez depois, ao ponto de lhe revirar completamente o humor. Até o isolar completamente numa tristeza inacessível. Eu tinha aprendido um palavrão novo. Uma das virtudes habilidosas do meu tio era a de funcionar como filtro de tolerância aos palavrões que a matula me ensinava e iam ocupando o meu vocabulário de rua: um riso para os vernáculos mais inocentes, cara de bota da tropa para os mais sérios, “espera, que eu vou já dizer isto à tua mãe” para os mais insidiosos. Então, resolvi testá-lo. O meu tio já estava realmente apoquentado, antes de o chamar por aquele nome. Não consigo dizer se já me tinha apercebido ou se só me dei conta da perturbação depois de ter feito asneira. Mesmo assim, arrisquei. Estávamos no meu quarto. Exclamei, sem dentes:
– … !
O meu tio não reagiu de nenhuma das três formas possíveis. Foi uma reacção vinda do inesperado, como se ouvisse uma voz carregada de saudades a chamar por ele. Chorou. Eu nunca tinha visto o meu tio chorar. A tristeza tinha um rosto sério, enxuto. Um rosto masculino. O rosto do meu tio. Caramba, aquilo deixou-me seriamente abalado.
Desesperado para que não fosse contar nada daquilo à minha mãe, ajoelhei-me na cama e juntei as mãos, como se guardasse uma borboleta lá dentro, e disse:
– Chiça, tio, era só a brincar. Não é preciso tanto!
A verdade é que o meu irmão também estava lá. Ouviu o nome que chamei ao meu tio. Chamou-me burro. Há poucas probabilidades de me ter dito isso. Mas eu acredito em coisas impossíveis. Quando lembramos, o que aconteceu já é outra coisa. Reitero: embora sejam a mesma pessoa, o eu que rememora os factos já não é o mesmo eu que os viveu. Daí que talvez o meu irmão me tenha mesmo chamado burro. Explicou-me o significado do que eu disse. O que aquele palavrão queria dizer estava um degrau acima do inofensivo. Mesmo assim, é difícil para mim livrar-me do nojo da culpa pela decisão do meu tio, ainda que o meu tio só o tenha feito muitos anos mais tarde.
Vozes. A hipótese de que as vozes descarnadas incomodassem o meu tio durante muito tempo é a que dá mais sentido àquilo que fez. Não disse ainda o que foi que o meu tio fez. Foi uma coisa que apagou um resto de dor na vida do meu tio e deixou a minha mãe, o meu outro tio, eu e o meu irmão e os meus primos a chorar de dor para o resto das nossas vidas.
– Edu. Edu. Edu.
Às vezes, ouço a voz do meu tio, escondida na minha cabeça. Juro. É verdade. Chama-me para dentro de casa.
– Tio. Tio. Tio.
Ainda não. Estou na rua. Com a matula. Ainda não é hora de ir ter com o meu tio.

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Agradecimento

02/01/2014

Ainda com os nervos em fogo de artifício. O que, dadas as últimas migalhas de mais trezentas e sessenta e cinco fatias de esperança renovada, dá uma farpela adequada ao momento. Escrevi ontem mesmo que, à excepção dos livros que leio, sou uma pessoa desinteressantíssima. Mas o que devia ter dito é que, à excepção dos amigos que tenho, sou uma pessoa desinteressantíssima. Herdei nos cromossomas a capacidade inata de fazer do reconhecimento pelo que nos é dado uma reação instintiva do coração e não uma regra passiva da boa educação. Por isso, cá estou a agradecer sentidamente a largueza de horizontes de todas as palavras, gestos e silêncios de ternura e generosidade que me foram concedidos durante o dia de ontem. Sei que a mediocridade das minhas frustrações, a crueza da minha sinceridade, o arame farpado dos meus medos, a intransigência da minha solidão nem sempre me têm tornado digno portador do respeito e carinho que me têm outorgado. Enfim… defeitos de fabrico que se avivam e se esbatem com o andar do prazo de validade. Porém, tenho plena consciência da minha boa fortuna em estar rodeado de pessoas junto de quem, perante a grandeza da sua presença, me apetece ajoelhar e de que o melhor do interior de nós está sempre no que fazemos para fora de nós.
Não vou repetir o estafado circunlóquio de final de ano, a desejar, a torto e a direto, boas entradas no tempo. O que hoje acaba, amanhã recomeça e nada deixará de ser como é. O velho ano está gasto e não deixa saudades, não tanto pelo que tive e perdi, mas pelo que me tirou sem me ter dado, e que é, como se sabe, um dos géneros mais terríveis de inquietação. Um anseio inconsolável por não sei bem o quê a que os alemães sabiamente nomearam “sehnsucht”. Ao longo de trinta e um anos, tenho-me confrontado com todas as perguntas que um homem deve fazer a si próprio e só tenho recebido a resposta de novas perguntas. Em apreço pela verdade, e no domínio dessa entidade a que chamam de Felicidade e me parece ser uma doença boa que só acontece aos outros, o melhor é fazer como o Horacio Oliveira, no Rayuela, do Cortázar: andar sem a procurar, mas sabendo que ando para a encontrar.

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Trinta e um

02/01/2014

Mais um ano averbado à curta conta da vida. Trinta e um. O número entra em alvoroço pela janela emotiva dos sentidos, provoca um pé de vento na cabeça e desarruma a significação deste dia natalício. A vida afectiva adiada, nenhuma certeza, todos os sonhos verdadeiros de ser um homem do meu tempo por cumprir. Ao assentar isto no diário, vêm-me à lembrança as palavras secas escritas pela mulher de Tolstoi e às quais já recorreram Miguel Torga, no diário, e António Lobo Antunes, nas crónicas: “morei quarenta anos com Leão Nicolaievitch e nunca soube que espécie de homem ele era”. O bom da literatura universal é que a ductilidade da sua medida tanto remedeia dois génios como o Torga e o Lobo Antunes, como faz gala num desgraçado como eu. De resto, vivo comigo há trinta e um anos, sei de que cepa terrosa venho, conheço-me como ninguém, e também não sei que espécie de homem sou. Tirando os livros que leio, sou uma pessoa desinteressantíssima. Ou talvez seja – lembro-me agora do célebre episódio de Mozart, aos seis anos, a correr desamparado para o colo de Maria Antonieta e a pedi-la em casamento – uma criança que apenas cresceu para fora e vive num irreprimível estado de perplexidade, ansiosa que o amem incondicionalmente.

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É tarde, é cedo, é tarde

02/01/2014

É TARDE É CEDO É TARDE

É tarde de mais para amar,
É cedo de mais para desistir,
É tarde de mais para sentir,
É cedo de mais para odiar.
É tarde de mais para rir,
É cedo de mais para chorar,
É tarde de mais para partir,
É cedo de mais para voltar.
É cedo de mais para o medo,
É tarde de mais para a coragem,
É cedo de mais para o degredo,
É tarde de mais para ir de viagem.
É tarde de mais para o futuro,
É cedo de mais para o passado,
É tarde de mais para o escuro,
É cedo de mais para o ilustrado.
É tarde de mais para a morte,
É cedo de mais para o azar,
É tarde de mais para a sorte,
É cedo de mais para começar.
É tarde de mais para a esperança,
É cedo de mais para ser criança,
É tarde de mais para não ter idade,
É cedo de mais para o desespero,
É tarde de mais para o exagero,
É cedo de mais para a eternidade,
É tarde de mais para o momento,
É cedo de mais para a saudade.
É tarde de mais para ouvir o vento,
É cedo de mais para o sofrimento,
É tarde de mais para a promessa,
É cedo de mais para dizer não,
É tarde de mais para a afirmação.
É cedo de mais para a pressa,
É tarde de mais para a lentidão,
O silêncio redondo que me atravessa
Vai e volta sem lhe deitar a mão.
Nos ponteiros do relógio, agora
É tarde e cedo e é outra hora:
O tempo é o espaço da solidão.

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Natal

02/01/2014

É um poema feito de luzes.
De cores que não se entendem.
De versos que se acendem
E logo depois se apagam
E a seguir se transcendem
E nunca mais se estragam.
Letras que ardem e são estrelas
Feitas de terra e água do mar
A iluminar a sala de estar.
Para que a gente possa lê-las,
Para conseguirmos vê-las
Numa árvore, a piscar,
Basta-nos o dom de sonhar.
Olhar o papel e ver o tecto,
Fazer da palavra o objecto,
Deixar a magia voar no ar
E esperar, ao desenhá-la,
Que a fantasia do Natal,
A brilhar no céu da sala,
Seja a expressão do real
Só de a gente imaginá-la.

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Partida

02/01/2014

Esperei-te como quem espera
Um rasgo íntimo da Poesia.
Mas o tempo não parava e era
Uma dor que trespassava a teimosia.

Nesse esforço paciente e obstinado,
Cruzava os lugares onde caminhas,
Fazia de mim um lugar desocupado,
O bilhete reservado que não tinhas.

Combati a solidão com o isolamento,
Até que não pude esperar mais.
Parto no comboio do sofrimento,
Vou “a poder de lágrimas e ais”.

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Assinaturas

02/01/2014

Agora que assento um pouco mais da poeira turbulenta dos meus dias no diário, quase me convenço de que a culpa de ter este ar de gato castrado, de viver escondido na paralisia de um retrato sério, de engolir nos olhos um caudal de lágrimas dum mar interior, não é minha. Bem pode dizê-lo esta minha amiga, que, na sua afectuosidade profunda, caminha sobre o fosso de lodo e crocodilos que me separa do resto do mundo na ligeireza de quem desliza à superfície das águas em passos flutuantes de ballet e me consegue pôr a assinar uns versos escanzelados que fiz no ano passado, a propósito do Natal. É uma coisa que detesto fazer. Porque gostava que os meus versos tivessem voz própria e, não tendo, porque não sou ninguém, não quero ser ninguém, e não sendo ninguém sou este coro múltiplo e anónimo de vozes turvas dentro de mim a dizer que sou o somatório fragmentado de tantos nadas. Mas é dos escassos amigos que me lê, não conheço outra pessoa genuinamente mais alegre, com tanta poesia no íntimo, cheia de sorrisos em cada gesto, e a oitava falência mortal seria a indecência de dizer não a quem nos dá tanto. Principalmente quando não o merecemos. Cada minuto de atenção que me consente, sabe-me por toda a vida. – Lembro-me de Maria Antonieta à beira do cadafalso a suplicar ao verdugo: “só mais um minuto, só mais um minuto, senhor carrasco!”, como se os sessenta estalidos secos no ponteiro dos segundos durassem uma boa eternidade que não passa nunca. – E, palavra de honra, que, durante cada um desses minutos, as vozes implacáveis do desprezo a repetirem que não sou ninguém cessam de agitar-se e sou momentânea e descaradamente feliz.

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Porque não um livro?

02/01/2014

Encontrou-me de olhos embaciados, a somar consoantes e vogais na palavra chuva escrita a traço fino e mudo na carta sinóptica do Jornal. Ao meu lado, o livro que me acompanhava, – estamos sempre a sós, eu e um livro, eu e eu, naquele lugar.
– E você, quando é que escreve um livro?
– E quem o leria? Um livro é uma obra da Natureza. Demora muito tempo erguer uma cordilheira articulada de palavras que a borracha do tempo não apague facilmente – respondi, a sentir a mudança de pressão, as linhas na carta sinóptica abaixo dos 1013 hectopascais.
– Mas escreve para a eternidade ou quê?!
Estávamos numa pastelaria, e a pergunta merecia uma resposta açucarada, adivinhando céu limpo, contra todas as previsões:
– Já me contentava ver uma frase ou um versozinho na cobertura de um bolo de aniversário. Ao menos dava aos meus amigos a minha atmosfera emotiva servida às fatias.
Mal sabia ele que os versos que me vieram à cabeça, eram estes:
“Erros meus, má fortuna, amor ardente.”
Versos que, como é consabido, nem sequer são da minha responsabilidade.